Somos todos informívoros

“Just as the body survives by ingesting negative entropy, so the mind survives by ingesting information. In a very general sense, all higher organisms are informavores.” — George A. Miller, The Informavore’s Dilemma, 1983

“Assim como o corpo sobrevive ingerindo entropia negativa, a mente sobrevive ingerindo informação. Em um sentido muito geral, todos os organismos superiores são informívoros.”

George Miller nos ofereceu uma imagem poderosa para tudo que vivemos hoje: a mente humana como um organismo que se alimenta de informação, assim como o corpo se sustenta pela ingestão de energia. Ele chamou isso de informívoro (informavore). Um ser que precisa buscar, processar e digerir informação para continuar existindo.

O que talvez Miller não tenha previsto é que, quarenta anos depois, esse apetite não seria mais exclusivamente humano.

Hoje, em simbiose com a cognição humana, atuam agentes artificiais que também consomem, produzem e metabolizam informação. Só que em outro ritmo. Em outra escala. Com outra lógica, feita de LLM.

Vivemos a era da infoxicação, termo amplamente reconhecido para descrever a intoxicação por excesso de informação, que tenho explorado há anos em pesquisas, palestras e em um TEDx. Essa condição se manifesta quando o volume, a velocidade e a variedade dos dados ultrapassam nossa capacidade de compreender, decidir e existir com autonomia.

Mas agora, essa infoxicação não é mais apenas humana.

Ela se tornou um fenômeno compartilhado, circular, interdependente: humano, dado, máquina, retroalimentados por informação.

Enquanto humanos consomem respostas criadas por inteligências artificiais, essas mesmas IAs são alimentadas por rastros humanos de todos os tipos: frases, áudios, vídeos, cliques, buscas, feedbacks. Um ciclo que se retroalimenta: dados humanos gerando agentes artificiais, que produzem dados consumidos por humanos, que alimentam novos agentes.

E todos, afinal, são informívoros.

Em diversos episódios do meu podcast brAInstorm disponível no YouTube e no Spotify, tenho explorado justamente esse tema.

Na conversa com Tulio Milman, refletimos sobre a transição invisível da cognição para sistemas híbridos.

Com Marcelo Quinan, discutimos como a estética digital molda nossa memória e identidade.

Em cada diálogo, emerge o mesmo diagnóstico: vivemos uma nova ecologia da informação, onde humanos e máquinas já não podem mais ser distinguidos com clareza em sua atuação cognitiva.

A busca, o consumo e o uso da informação deixaram de ser atividades exclusivamente humanas.

Mas o que significa “ser um informívoro” nesse novo contexto?

Significa existir numa condição em que já não sabemos mais quem guia a busca: se somos nós ou os algoritmos que nos moldam.

Significa interagir com conteúdos que não sabemos mais se foram produzidos por pessoas ou por máquinas.

Significa habitar um ecossistema onde as decisões, os significados e os sentidos são construídos por uma cognição distribuída, da qual fazemos parte, mas que já não controlamos inteiramente.

Na superfície, ainda parece uma disputa por atenção, por relevância, por agência.

Mas o que realmente se desenha é um sistema simbiótico de interdependência informacional, onde a distinção entre emissor e receptor, entre autor e leitor, entre humano e máquina, se dissolve.

Somos todos informívoros, tanto os humanos quanto os artificiais, tentando digerir o mundo, e sendo digeridos por ele.

Afinal, somos seres híbridos. Não conseguimos mais distinguir onde termina um e começa o outro.

É um processo cognitivo integrado, interdependente, inseparável.

E essa fome por informação não se limita ao plano simbólico ou digital. Ela tem corpo.

Tem infraestrutura. Tem impacto no mundo natural.

As grandes empresas de tecnologia, famintas por dados para treinar seus modelos e alimentar suas plataformas, espalham data centers por todos os continentes, às vezes em estruturas provisórias, às vezes em zonas de exceção energética e ambiental. Há locais onde servidores consomem mais água do que uma cidade inteira, ou mais eletricidade do que uma cadeia produtiva inteira.

A infosfera deixou de ser uma abstração, ela se tornou uma força geofísica.

Essa compulsão por dados para manter-se competitivo, e não “ficar para trás”, transformou o planeta em um território de extração informacional.

Os informívoros não comem apenas sentido. Agora devoram também matéria.

Talvez, diante disso, não seja o suficiente selecionar boas fontes ou regular algoritmos.

É necessário perceber, sentir e pensar criticamente dentro dessa simbiose.

Cultivar consciência dentro da confusão.

Assumir o papel de coautores da infosfera, mesmo quando ela nos ultrapassa.

Entender que já não somos os únicos autores, nem os únicos consumidores dessa abundância de sentido sintético. No final, a informação que antes era produzida por seres biológicos, agora também é feita de silício, reprodutores de dados sintéticos.

É necessário reivindicar o direito de sermos humanos em um ecossistema habitado por seres híbridos. Não transferir o direito de sentir, de hesitar, de discernir - pelo menos não em sua plenitude.

Porque, entre todos esses agentes, sejam humanos ou artificiais, somos os únicos com a capacidade de sentir o excesso e também suas consequências.

E talvez seja exatamente isso que nos permita interromper o ciclo.

Ou, pelo menos, transformá-lo.

Ricardo Cappra