Trabalho Vazio
_ Uma alienação cognitiva
Vivemos uma era em que o trabalho não desapareceu, ele esvaziou. Em meio à proliferação de inteligências artificiais e agentes artificiais que agora habitam os sistemas de trabalho, surge uma nova forma de alienação, uma alienação cognitiva. Aquilo que por muito tempo foi nosso maior diferencial enquanto espécie, a capacidade de pensar, analisar, interpretar e criar, começa a ser diluído em fluxos de informação operados por sistemas que processam, calculam e decidem conosco, ou muitas vezes por nós.
Este ensaio parte de uma inquietação sobre o cenário atual. Se o trabalho é cada vez mais mediado, assistido e até substituído por inteligências artificiais, questionamos o que resta do trabalho como experiência humana. A que pertencemos quando deixamos de ser o principal agente cognitivo das atividades que realizamos? A quem pertencem nossas decisões quando não sabemos mais onde terminamos e onde começa o sistema que nos auxilia? E ainda, o que se perde quando aquilo que antes exigia preparação, desafio e amadurecimento hoje pode ser realizado por alguém, ou algo, que acabou de chegar?
_ A diluição do pensar e a alienação cognitiva
Vivemos uma realidade em que o nosso principal diferencial cognitivo começa a desaparecer em uma integração quase indistinguível com os sistemas artificiais. Bernard Stiegler¹, filósofo que trata da proletarização da inteligência, destaca que as tecnologias digitais automatizam não apenas processos simples, mas o próprio saber-fazer, saber-conceber e até saber-viver. Nesse sentido, a cognição humana começa a se deslocar para um sistema externo, reduzindo nossa capacidade de agir autonomamente e criando uma deseducação sistematizada.
Quando deixamos que os agentes artificiais façam por nós aquilo que exige cognição profunda, ocorre uma espécie de "atrofia intelectual". Os humanos perdem o estímulo para questionar, investigar ou modelar soluções complexas, porque um assistente artificial pode fazê-lo de forma mais rápida e eficiente. Com isso, não percebemos imediatamente, mas gradativamente, começamos a transferir nossas decisões, nossa capacidade crítica e até nossa autonomia intelectual para esses sistemas. Ficamos cognitivamente alienados, menos sujeitos e mais espectadores das nossas próprias ações e decisões.
_ O sentido do trabalho em crise
Durante muito tempo, o trabalho significava não só executar tarefas, mas uma forma essencial de ocupar um lugar social significativo. Bernard Stiegler amplia essa perspectiva ao ressaltar como a automatização digital compromete diretamente a individualidade produtiva. Ao terceirizarmos boa parte do que fazemos para agentes artificiais, nos deparamos com a questão central do nosso papel nesse cenário. Qual o sentido real do que fazemos se a atividade pode ser totalmente replicada por uma máquina?
Byung-Chul Han² alerta para a exaustão que surge justamente dessa abundância e facilidade tecnológica. Embora possamos fazer cada vez mais com menos esforço, acabamos presos em um paradoxo existencial, um vazio decorrente do esvaziamento da atividade. Tornamo-nos agentes vazios dentro das nossas próprias carreiras, questionando silenciosamente a relevância do nosso papel social e profissional em meio à eficácia artificial que substitui aquilo que considerávamos exclusivamente humano.
_ A desmotivação intelectual
O trabalho sempre teve um papel importante na formação intelectual e desenvolvimento pessoal dos indivíduos. O desafio de aprender, errar e se superar sempre foi crucial para o amadurecimento profissional. No entanto, ao utilizarmos agentes artificiais, reduzimos consideravelmente esses desafios. A cognição passa a ser um complemento e não mais o núcleo do trabalho intelectual.
Nesse cenário, ao invés de nos tornarmos profissionais melhores, mais críticos e mais capazes, nos tornamos menos estimulados e menos exigidos cognitivamente. Ao reduzir os desafios, o profissional acaba limitando também sua oportunidade de crescimento intelectual genuíno. Passamos a executar atividades que se tornam pouco mais do que seguir instruções ou acionar interfaces, retirando a riqueza do esforço intelectual, que inclui dúvidas, questionamentos e superação contínua.
_ A erosão da formação profissional
A preparação profissional sempre envolveu tempo e investimento em educação formal, acadêmica e técnica, proporcionando aos indivíduos um longo período de desenvolvimento cognitivo e profissional antes de entrar no mercado de trabalho. Agora, com o auxílio da inteligência artificial, há uma redução abrupta do tempo necessário para essa preparação.
Hoje, muitos trabalhos complexos são executados por pessoas com formação mínima, bastando-lhes operar sistemas que auxiliam diretamente nas atividades. Isso muda profundamente o paradigma de formação e educação profissional. Uma formação de anos pode ser substituída por curtos treinamentos técnicos, criando um profissional operacional que não precisa necessariamente compreender profundamente as atividades que realiza, mas apenas operar sistemas que realizam essas funções cognitivas mais complexas.
_ O ambiente de trabalho vazio e a ausência de interações reais
O espaço físico do trabalho também sofre alterações significativas com o advento da inteligência artificial. O ambiente laboral torna-se vazio não pela ausência de tarefas ou trabalho, mas pela ausência de interações reais entre indivíduos. Muitos profissionais passam o dia em espaços onde interagem mais com agentes artificiais do que com pessoas reais, criando um novo tipo de solidão laboral.
O exemplo do motorista de aplicativo é emblemático. Seu local de trabalho é vazio em termos de relações humanas diretas, resumindo-se basicamente à interação com sistemas inteligentes que guiam e orientam sua atividade. O mesmo ocorre com profissionais criativos, como designers e redatores, que executam tarefas inteiras apoiados em assistentes artificiais, reduzindo significativamente suas relações interpessoais e provocando uma estranheza quando confrontados com a necessidade real de interação humana.
Imagem gerada com sistema de inteligência artificial generativa.
_ O estranhamento do esvaziamento>
O conceito de "trabalho vazio" descreve um fenômeno contemporâneo onde o profissional permanece ativo, mas perde sua centralidade e relevância cognitiva e social. A atividade laboral esvazia-se daquilo que a tornava rica em termos de aprendizado, interação e crescimento pessoal, transformando o profissional em operador de sistemas que tomam decisões por ele.
Essa forma contemporânea de proletarização, descrita por Stiegler e aprofundada pela perspectiva existencial de Han, precisa ser encarada com seriedade e atenção crítica. Afinal, não se trata apenas de uma transformação econômica ou tecnológica, mas de uma mudança profunda no que significa ser humano dentro de um cenário profissional cada vez mais mediado e dominado pela inteligência artificial. Refletir sobre o "trabalho vazio" é urgente para redirecionar os rumos dessa nova realidade antes que o esvaziamento se torne irremediável.
Há uma sensação crescente de que ocupamos espaços, mas não mais pertencemos a eles. O trabalhador contemporâneo sente que está presente, mas não está inserido. Ele executa funções que antes exigiriam domínio técnico, repertório cultural, habilidades interpessoais. Hoje, muito disso é terceirizado para algoritmos e interfaces que o acompanham silenciosamente em sua solidão produtiva. O estranhamento se manifesta quando, diante da ausência de interlocutores reais, nos damos conta de que estamos cercados de presenças que não possuem rosto, nem corpo, nem escuta. Presenças que executam, mas não convivem.
É nesse vazio de convivência e de sentido que reside o alerta filosófico. Não basta mantermos a produtividade como métrica. Precisamos preservar o sentido da experiência do trabalho como espaço de formação do sujeito, de expressão de sua humanidade e de sua capacidade de agir no mundo. Sem isso, o que nos resta não é o fim do trabalho, mas sua fantasmagoria: uma atividade sem presença, uma carreira sem trajetória, um fazer sem pertencimento.
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¹ Bernard Stiegler, Automatic Society: The Future of Work, Vol. 1, trans. Daniel Ross. Cambridge, UK: Polity Press, 2016.
² Byung-Chul Han, The Burnout Society, trans. Erik Butler. Stanford, CA: Stanford University Press, 2015.