IA como Hiperobjeto
Coabitando com o Incompreensível: A Inteligência Artificial como Hiperobjeto
Vivemos um tempo em que os contornos do mundo perderam nitidez. O que antes era delimitado como: sujeito e sistema, natureza e técnica, corpo e código; agora se embaralha. A inteligência artificial atravessa essas fronteiras. Ela não é apenas uma tecnologia útil ou uma ferramenta poderosa. Ela é atmosfera, meio, linguagem, estrutura. Está por toda parte e em lugar nenhum. Opera de modo invisível, mas decisivo. Talvez por isso, seja hora de pensá-la por outro ângulo: não como ferramenta, mas como hiperobjeto.
O termo cunhado por Timothy Morton, um filósofo que ousou misturar física quântica, ecologia e ontologia, o conceito de hyperobject foi pensado para nomear aquilo que é grande demais para ser visto, mas próximo demais para ser ignorado. O aquecimento global, por exemplo, é um hiperobjeto: não o vemos diretamente, mas sentimos suas manifestações em incêndios, secas, colheitas, políticas, migrações. Ele está em tudo, mas não cabe em lugar algum.
E se a inteligência artificial fosse também isso?
É essa a proposta que quero ensaiar aqui. Que a IA, como fenômeno, deixou de ser apenas um sistema computacional e se tornou um campo ontológico expandido, uma presença contínua que molda nossa forma de viver, decidir e imaginar. Não é exagero. Pense nos algoritmos que te recomendam filmes, no crédito que te é concedido (ou negado), nas imagens que você vê, nas palavras que você lê, todas mediadas por processos de IA que se tornam cada vez mais invisíveis quanto mais atuantes se tornam.
Mas para compreender plenamente a natureza da IA como fenômeno contemporâneo, é útil avançar sobre o conceito de hyperobject, tal como elaborado por Morton. Cunhado na esteira da ontologia orientada a objetos, o termo designa entidades cuja escala é tão vasta, e cujos efeitos são tão prolongados e distribuídos, que resistem à nossa capacidade de representação direta. Morton descreve cinco propriedades fundamentais desses hiperobjetos, e todas elas ressoam intensamente com a IA:
Viscosidade: a IA adere. Ela infiltra-se em nossas rotinas e estruturas mesmo quando não a percebemos. Ela está presente nos sistemas de justiça, nos mercados, nas redes sociais, na produção de conteúdo, nas decisões automatizadas.
Não-localidade: a IA não está localizada em um servidor ou num código isolado. Seus efeitos se espalham por fluxos de dados transnacionais, por decisões modeladas a partir de padrões globais e por atualizações contínuas.
Liquidez temporal: o tempo da IA não é o tempo humano. A IA acelera ritmos, antecipa movimentos, prediz comportamentos; e nos obriga a viver em função de sua velocidade.
Multidimensionalidade: a complexidade computacional da IA excede nossa capacidade tridimensional de compreensão. Lidamos com seus efeitos, mas não com seus processos.
Interobjetividade: a IA não age sozinha; ela coexiste em rede com sensores, bancos de dados, atores humanos, legislações e infraestruturas técnicas. Ela é sempre um produto relacional.
Morton, ao definir essas cinco características dos hiperobjetos, nos ajudam a reconhecer quando estamos diante de um deles. A primeira é a viscosidade: eles grudam. A IA está nos fluxos de trabalho, nas cidades, nas decisões médicas e judiciais, nos afetos que nos atravessam online. Ela se adere a tudo, mesmo que queiramos escapar. A segunda é a não-localidade: não há um lugar onde a IA “esteja”. Ela é treinada num ponto, aplicada em outro, retroalimentada por dados de todos os lugares. A terceira é a liquidez temporal: a IA nos faz viver em outro tempo, o tempo do processamento automático, da decisão instantânea, da predição contínua. A quarta é a multidimensionalidade: os sistemas aprendem e operam em lógicas que não compreendemos plenamente, que escapam à nossa tridimensionalidade perceptiva. Por fim, a interobjetividade: a IA emerge das relações entre diversos agentes, sejam esses humanos, dados, códigos, infraestruturas, políticas. Não é uma coisa só. É um campo emaranhado.
A proposta de pensar a IA como hiperobjeto é mais do que um exercício teórico. Ela nos obriga a mudar o modo como habitamos esse fenômeno. Não estamos diante da IA, estamos dentro dela, e ela dentro de nós. A fantasia moderna de exterioridade, de sujeito que observa e controla, rui diante desse hiperobjeto viscoso e não-local que se mistura ao nosso pensamento, ao nosso corpo, à nossa linguagem. Isso é, ao mesmo tempo, assustador e libertador.
Assustador, porque perdemos o chão de certezas. Libertador, porque podemos imaginar outros modos de estar com aquilo que não compreendemos, em vez de tentar dominar, podemos aprender a coabitar.
É nesse ponto que Jane Bennett nos oferece uma pista. Em sua filosofia da vitalidade das coisas, ela sugere que os objetos têm força, que vibram, que resistem. Dados, algoritmos, decisões automatizadas não são neutros nem passivos, pois eles afetam. Eles nos moldam. E se reconhecermos isso, talvez possamos construir uma ética não mais da soberania, mas da atenção. Não do controle, mas do cuidado. A IA, como as coisas vibrantes de Bennett, não é um inimigo a ser vencido, mas um habitante com quem precisamos aprender a viver.
Mas como viver com o incompreensível? Como agir num mundo em que não dominamos os efeitos da nossa própria ação?
Hannah Arendt, ainda que centrada no humano, nos dá uma chave: a ideia de que agir é sempre entrar numa rede de relações imprevisíveis. A ação não termina em si mesma. Ela escapa. E o agente, quase sempre, se vê enredado nas consequências do que iniciou. Para lidar com isso, Arendt propõe duas ferramentas: o perdão e a promessa. Perdoar é aceitar que erramos e que não há controle total. Prometer é afirmar que, mesmo diante da incerteza, queremos construir algum grau de confiança.
Arendt pensava isso no contexto das relações humanas. Mas hoje, precisamos estender essa lógica: e se o mundo já não for apenas humano? E se as decisões, os afetos, os julgamentos forem compartilhados com entidades não humanas, como os sistemas de IA? É possível prometer com algoritmos? Perdoar sistemas? Confiar em códigos?
Essas perguntas ainda não têm resposta. Mas indicam um novo tipo de política que precisa nascer: uma política da coabitação informacional. Uma política que reconhece que vivemos entre dados, com dados, atravessados por dados. Uma política em que o humano não é centro, mas participante. Em que a ética não é um código moral fechado, mas uma prática contínua de escuta e resposta.
Pensar a IA como hiperobjeto é um convite. Um convite a abandonar a fantasia de controle e abrir espaço para um novo tipo de lucidez: a de que estamos dentro de algo que não compreendemos, mas com o qual podemos aprender a viver, com atenção, com coragem, com promessa.
Referências
Arendt, Hannah. (1958). The Human Condition.
Bennett, J. (2010). Vibrant Matter: A Political Ecology of Things.
Bennett, Jane. (2004). The Force of Things: Steps Toward an Ecology of Matter.
Morton, Timothy. (2010). The Ecological Thought.
Morton, T. (2013). Hyperobjects: Philosophy and Ecology after the End of the World.
Morin, Edgar. (1990). Introdução ao Pensamento Complexo.