Três ondas de uma transformação analítica

Estamos atravessando uma transição profunda na forma como os negócios operam. Dados e inteligência artificial deixaram de ser ferramentas de apoio e estão se tornando a espinha dorsal das decisões, das estratégias e da própria estrutura das organizações. Isso está afetando lideranças e organizações, de todos os setores e tamanhos, seja de forma direta ou indireta.

Essa transformação está ocorrendo em ondas.

Onda 1: pensamento analítico

Tudo começou quando ciência e tecnologia se encontraram no campo da análise. Matemática, estatística, computação. Da junção desses pilares, nasceu a ciência de dados, e então se espalharam técnicas e especialistas para desenvolver soluções para problemas relacionados à automação da informação.

Nesse primeiro momento, o foco estava nas áreas técnicas e/ou especialista, como TI, BI, analytics. Era como se o trabalho como dados fosse para poucos privilegiados que funcionam como um portal para as informações, e esses eram os reponsáveis por traduzir dados em relatórios, gráficos e modelos de acordo com as demandas de negócios.

Isso deu início ao pensamento analítico nas organizações.

Só que esse pensamento ficou, por muito tempo, restrito a poucos. Um saber encapsulado. Um “silo” que separava quem entendia os dados de quem tomava decisões com base neles.

A análise existia, mas ainda não era linguagem comum. Não existia uma democracia analítica.

Onda 2: cultura analítica

A segunda onda veio quando o dado começou a circular fora desses silos especialistas. Dashboards chegaram às lideranças. Indicadores atualizados em tempo passaram a pautar reuniões. Times que antes partiam de sua intuição, passaram a questionar com evidências e compreender os dados.

Esse movimento conhecido como data-driven criou uma nova onda.

O entendimento que dados eram um recurso valioso precisou estabelecer uma mudança cultural, não apenas formado por uma cultura digital, pois essa nova onda demonstrou que não eram sobre os recursos, e sim sobre a forma que as pessoas se relacionavam com dados, fosse nos aspectos científico, técnico, tático ou estratégico. Assim surgiu a onda da cultura analítica.

Quando a organização passou a interpretar dados de forma crítica, questionar métricas, entender limitações, conectar análise com contexto… ela entrou em outro estágio.

A análise deixa de ser um produto técnico e se torna uma prática coletiva.

É quando o dado se torna parte do jeito de decidir, de planejar, de agir.

A cultura analítica não é sobre usar dados, é sobre pensar com dados.

Onda 3: consciência do artificial

Os dados então passaram a se movimentar “para frente”, modelos preditivos e prescritivos passaram a prever o que aconteceria, fosse um próximo caractere digitado pelo usuário ou a compra que o consumidor faria na loja, e isso criou uma terceira onda.

Ela é diferente das anteriores. Não é só sobre analisar. Nem só sobre democratizar. É sobre conviver com agentes não humanos. Agentes e operadores artificiais passaram a realizar parte das tarefas intelectuais, antes possíveis serem realizadas somente por humanos.

Porém, essas ferramentas já não apenas mostram o dado (aliás, muitas vezes elas nem mostram mais os dados), mas que sugerem decisões, automatizam tarefas, interagem com clientes, participam de processos.

Essa é a era AI-driven. Somos orientados por recursos com inteligência artificial.

E assim, voltamos ao ponto inicial das ondas, e criamos mais um silo. Agora o silo cognitivo, ou seja, invisível. Poucos compreendem o funcionamento dos agentes de IA, e muitos apenas seguem suas recomendações, sem questionar. Essa onda exige algo que as anteriores não exigiam com tanta força: consciência de sua existência.

Consciência sobre o que a IA está fazendo. Sobre o que deixamos de fazer quando terceirizamos à máquina. Sobre os impactos, sejam éticos, sociais e culturais da nossa convivência com o artificial. Não é sobre usar IA. É sobre compreender como e o que ela muda. E o que ela revela.

O risco de querer pular ondas

É aqui que mora o erro mais comum que tenho visto nos últimos anos: organizações que querem “ir direto pra IA”, sem antes estruturar pensamento e cultura. Entendo quando fazem isso com ferramentas.

É possível “escalar” recursos técnicos, mas não recursos humanos.

Claro, todos querem os benefícios do futuro, mas sem construir as fundações. Querem decidir com algoritmos, sem nunca terem aprendido a decidir com dados.

O resultado? Decisões frágeis, dependência cega e muita aposta disfarçada de estratégia. É tentador pular ondas. Mas quem vai exclusivamente nessa direção em algum momento vai se perder.

Gestão analítica como eixo

Gestão analítica é um eixo que pode conectar as três ondas, e evitar que elas se percam, deixando um legado de desconhecimento sobre o que levou a organização até aquele ponto.

Uma gestão analítica não se resume a governança técnica ou a KPIs sofisticados. É, antes de tudo, um compromisso estratégico com a análise como hábito, com a cultura como linguagem e com a tecnologia como responsabilidade.

Para lideranças, isso significa parar de ver os dados como um recurso acessório ou insumo técnico. E começar a tratá-los como parte essencial da estrutura organizacional, algo que precisa de políticas, rotinas, decisões e comportamentos consistentes.

Para as organizações, gestão analítica é o que torna viável operar em ecossistemas cognitivos híbridos, onde humanos e máquinas compartilham tarefas, decisões e sentido. É o que permite navegar pela complexidade informacional da era da IA sem perder a direção.

Um eixo de gestão analítica serve para sustentar:

  • a atitude analítica como forma de pensar e agir,

  • a cultura analítica como prática coletiva e organizacional,

  • e a consciência do artificial como horizonte ético e estratégico.

É sobre cultivar uma forma nova de operar. Uma forma que entende que o valor dos dados não está apenas no que eles mostram, mas em como somos capazes de interpretá-los, colocá-los em contexto e transformá-los em decisões com significado. É a maturidade analítica que define o quanto uma organização está no controle do rumo. Com gestão, as ondas se articulam e se interligam. Sem gestão, elas se dispersam e confundem.

Consciência do movimento

Não estamos mais falando de previsões de futuros das organizações, pois não dá tempo nem de falar do presente. Um presente que se apresenta em camadas, moldado por ondas que exigem mais do que atualização tecnológica. Exigem posicionamento.

O pensamento analítico nos ensinou a observar.

A cultura analítica nos ensinou a interpretar.

A consciência do artificial nos força a reconhecer que já não estamos mais sozinhos nas decisões.

Quem ignora essas ondas, ou tenta navegar apenas a última, acaba construindo organizações frágeis. Elas são dependentes de modismos, vulneráveis a tecnologias que não compreendem e distantes de qualquer forma de autonomia estratégica.

Liderar nesse cenário é assumir a responsabilidade de cultivar inteligência humana, analítica e ética. Diante de sistemas que já operam, muitas vezes, sem transparência ou compreensão, essa deixou de ser uma opção estratégica, tornou-se uma obrigação para quem está conduzindo processos de mudanças nas organizações.

A transformação digital não foi um evento. Foi um processo de acúmulo técnico, cultural e cognitivo, que nos levou de uma ciência de dados isolada à consciência do artificial distribuído. Não se trata de dominar a IA. Trata-se de não abrir mão da autoria diante dela. Assumir a gestão é um gesto de autoria.

As organizações que compreenderem essas três ondas estarão aprendendo a pensar com dados, decidir com consciência e conviver com o artificial sem se diluir nele. Não adianta apenas se adaptar. Navegar essas ondas não exige necessariamente velocidade. Exige consciência de direção.

Ricardo Cappra