Sobre Ser Híbrido

Esta foi a palestra que fiz no TEDx Laçador, que também marca o lançamento do meu livro Híbridos: o futuro do trabalho entre humanos e máquinas. Foi uma celebração e, ao mesmo tempo, um manifesto: uma tentativa de iluminar, através da filosofia e da cultura analítica, o que significa ser humano em um mundo compartilhado com inteligências artificiais. Este texto registra, na íntegra, aquela reflexão.


O que permanece humano em nós?

Parece uma pergunta simples, mas é muito profunda.

Cada batida do coração, cada passo, cada compra... está tudo registrado. Tudo é dado. Então, onde começa e onde termina aquilo que definimos como ser humano?

Pesquiso cultura analítica há mais de vinte anos. Já estudei a relação entre humanos e dados nos negócios, na ciência, na tecnologia. Mas, nos últimos tempos, uma questão filosófica tem me incomodado: o que significa essa relação com os dados para a concepção do ser humano?

O filósofo Luciano Floridi chamou esse ambiente ao qual me refiro de infosfera: um ecossistema invisível onde humanos, dados e máquinas trocam informações o tempo todo. Não pense em uma rede social. Pense no corpo humano — nossos órgãos trocando informações entre si, o corpo trocando sinais com o ambiente, e tudo isso dentro de um ecossistema interconectado e tecnológico.

Não estamos dentro ou fora da infosfera. Somos parte dela. Estamos inseridos na natureza, e nossos sistemas estão interligados por informações. É nesse ambiente que nossa identidade, nosso trabalho e até nossa humanidade estão sendo redefinidos.

A inteligência artificial está em toda parte — no GPS, nas músicas, nas recomendações de notícias e nas compras que fazemos. O curioso é que essa IA desapareceu. Ela se tornou uma presença invisível em nossas vidas. Naturalizamos a IA como se fosse neutra. Mas ela não é neutra. Nós a influenciamos, e ela nos influencia — o tempo todo. Essa presença invisível está transformando o ser humano.

Se eu pedir para você desenhar a IA, o que colocaria no papel? Um robô? Uma nuvem digital? Um circuito? Esse exercício mostra que ainda imaginamos a IA como um objeto. Mas nada disso é IA. Tudo tem IA, mas nada é aquilo que chamamos de IA. Tentamos tangibilizar a IA como algo físico, mas ela não é. Ela faz parte do ecossistema informacional que habita nossas vidas — essa infosfera — afetando nosso trabalho, nossos relacionamentos, nossos pensamentos, nossa existência.

E é justamente o fato de não conseguirmos representá-la que a torna invisível. Ela está em tudo, e já não conseguimos determinar onde termina o humano e onde começa a IA.

Essa presença invisível está mudando quem somos. Se amanhã desaparecêssemos do mundo, o que restaria seriam nossos dados, nossos registros. E talvez esses rastros digitais digam mais sobre nós do que conseguimos expressar com nossa própria voz.

Não se trata apenas de dados ou tecnologia. Trata-se de identidade, de legado, de o que ficará do humano no mundo.

Essa nova identidade traz uma série de dilemas. Um dos principais é o da autonomia. Já não decidimos mais nada sozinhos. O GPS escolhe o caminho, os algoritmos definem o que vemos, a IA completa nossas frases. A ideia de independência está em crise. O sujeito autônomo está sendo reconfigurado. Dependemos da tecnologia para lembrar, pensar e até agir. Mas isso não significa que estamos perdendo o controle — estamos nos tornando um novo tipo de ser.

Um ser híbrido.

Não somos mais apenas biologia. Não somos apenas natureza. Somos tecnologia e técnica. Somos dados e máquinas. Fazemos parte de um novo ecossistema informacional — ainda pouco compreendido.

Hoje, nossas lembranças, ações e interpretações do mundo já são co-produzidas com tecnologia, com dados, com IA. Conheço médicos que usam IA para diagnosticar pacientes. Conheço designers que já não sabem se suas criações são fruto do próprio trabalho ou do algoritmo. Médicos diagnosticam com IA, designers criam com algoritmos, programadores escrevem códigos com co-pilotos digitais.

Nada do que realizamos no mundo é exclusivamente humano. Não é mais uma realização isolada. Tudo resulta de uma interdependência entre humano, dado e máquina. Isso é o híbrido. Nós somos seres híbridos. Feitos de biologia, dados e técnica.

Tudo isso pode parecer assustador. Essa transformação dá medo. Mary Shelley já descreveu essa sensação em Frankenstein: uma criatura feita de elementos não biológicos que escapa ao controle do criador. Esse medo se repete na história: medo da eletricidade, dos computadores, dos carros, dos robôs. E, no entanto, hoje dependemos de tudo isso para sermos humanos.

O medo pode ser vencido — não com censura, mas com consciência. Com conhecimento. O antídoto é a educação. É ela que transforma o medo em responsabilidade. É ela que ilumina o que está acontecendo com nossa forma de ser.

O futuro não é sobre evoluções técnicas — é sobre essência. Aquilo que preservamos de humano. A essência molda a técnica, mas também é moldada por ela. A ética está nas escolhas que fazemos ao conviver com máquinas e dados.

O medo desaparece quando há clareza. E a clareza surge da consciência. E a consciência nasce da educação.

O futuro não é apenas humano, nem apenas artificial. É um futuro feito de seres híbridos. Nós somos esses seres híbridos. A questão não é quando viveremos esse futuro — já o vivemos. No GPS que usamos hoje, na compra que fizemos ontem, no relacionamento que construiremos amanhã.

A pergunta é: que tipo de ser híbrido queremos ser? Um ser híbrido consciente?

O futuro não está entre humanos e máquinas, porque eles já são uma coisa só. Se quiser ver a IA representada, olhe-se no espelho. Ela está em nós.

A essência da técnica e a essência humana são feitas da mesma matéria: das decisões e escolhas humanas.

Ser híbrido e consciente é uma escolha essencialmente humana.


Veja a apresentação de slides:


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Três ondas de uma transformação analítica